quinta-feira, 4 de abril de 2013

Rompendo com a imagem de índio do senso comum...


Trecho de entrevista com Daniel Munduruku

Escritor indígena com 43 livros publicados, 
graduado em Filosofia, 
com licenciatura em História e Psicologia. 
Doutor em Educação pela USP, 
é Diretor Presidente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. 

Tributários que somos como brasileiros, de uma forte tradição indígena, que é parte constitutiva de nós mesmos, quais os estereótipos que ainda persistem na nossa “representação do índio” e como podemos superá-los, reconhecendo essa tradição como nossa ancestralidade?

A ancestralidade não é para ser pensada como algo atrasado e parado no tempo. Este é um dos estereótipos que estão presentes na mente brasileira. O mesmo se pode dizer da tradição. Este conceito está ligado a sociedades paradas no tempo. Não tem falácia mais imprópria. Isso tem que ser combatido com novos conceitos e vivências. É preciso que as pessoas entendam que não há nada de errado em respeitar o passado. O errado é negá-lo. Acontece que muita gente “olha para trás” para ver o passado. Os povos indígenas não fazem isso. O passado se une ao agora, ao presente. Não há nenhuma possibilidade de um indígena chorar o passado, pois ele sabe que este tempo é memorial. Ele não é real. Portanto, o brasileiro é um indígena essencialmente. O indígena é brasileiro apenas por acidente geopolítico. Por isso não entendo um país que não valoriza seus antepassados sem precisar chorar por eles, uma vez que eles estão no seu sangue. Por que isso acontece? Porque nunca ninguém disso isso ao brasileiro. A ele foi ensinado que índio é bicho, atrasado, incompetente no uso da terra, preguiçoso, desumano. Isso é ainda hoje ensinado – se não pelas escolas, em casa – ao inconsciente nacional. 

A mídia tem muita responsabilidade sobre isso, até mais que a escola. Aliás, a escola é sempre a última a receber notícias atualizadas sobre os povos indígenas; há muitas dezenas de anos que ensina a mesma coisa porque acredita que o que está estabelecido é a verdade absoluta. O brasileiro precisa conhecer de verdade que o que ensinam para ele – sobre nossos povos e outros temas – é mentira.

Em entrevista recente, você afirmou: “Um adulto, se quiser ler meus livros, terá que fazer um exercício para ouvir suas vozes ancestrais. Isso as crianças fazem sem esforço”. Por quê?

As crianças têm um canal aberto com sua ancestralidade. Elas são emotivas e conseguem chegar onde os adultos não chegam. Os adultos costumam ser bloqueados pelas vozes da escola, da economia ou da política. Isso os impede de “acordar” as memórias ancestrais que trazem em si. O adulto precisa se curvar a esta verdade, caso queira compreender a escrita indígena.

Se oferecermos, desde a primeira infância, a música dessa voz ancestral, teremos chance de formar adultos melhores, capazes de ouvir, respeitar e dialogar com essa voz?

Penso que crianças completas serão adultos completos. Ponto. Simples assim. A criança vem sem defeito de fábrica. Portanto, vem trazendo consigo todo o equipamento para viver bem. Acontece que ela cai num mundo que acha o contrário, pensa que ela vem sem nada e que precisa ser formada – colocada na forma – para ser “alguém” na vida. A solução do dilema é educar a criança para ser criança e nada mais. Qualquer outra tentativa de fazê-la ser o que ela não pode ser vai transformá-la em adulto frustrado.

Uma das frentes trabalhadas pelo Instituto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais é a Caravana Mekukradjá, que visa difundir a literatura indígena. Entre as atividades oferecidas, há cursos e palestras para professores sobre como trabalhar a questão indígena em sala de aula. Em linhas gerais, quais as orientações repassadas aos docentes?

Procuramos mostrar aos educadores exatamente o que dissemos atrás: tá tudo errado na compreensão de nossos povos indígenas. A gente tem que desconstruir o paradigma que eles trazem dentro de si, fruto da educação familiar e escolar. Fruto da universidade que não o ajudou a colocar algo novo em sua mente. Dizemos aos educadores que é preciso tratar a criança como criança e não como um investimento futuro. Dizemos que é preciso que o educador saiba que tipo de ser humano ele acredita estar formando. Aí questionamos as suas crenças, seus dogmas. Às vezes temos êxito, outras não. Isso faz parte do processo.

 Além da literatura, quais outros instrumentos e expressões estéticas podem contribuir para a abordagem aprofundada da questão indígena?

Dizia mais acima que todas as manifestações da cultura indígena se prestam para a compreensão de nossa diversidade. Neste sentido é importante pensar estas manifestações como parte da cultura e não separada dela. A cultura é um conjunto. É bobagem tentar extrair dela elementos distintos. Uma cultura tem que ser compreendida em sua totalidade e não apenas através de suas manifestações. Quem faz isso é o ocidental, que aprende a dividir os conhecimentos em quadrados guardados a sete chaves. A nova escola tem que pensar no conjunto. O novo ser humano tem que ter isso claro. Caso contrário, ele não será novo.

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